2 de dez. de 2014

A teologia holandesa é arrojada, afirma N. T. (Tom) Wright

A teologia holandesa é arrojada[i] , afirma N. T. (Tom) Wright



[i] Audaz, atrevida, arrojada, minuciosa, meticulosa, resoluta, corajosa, firme todas estas seriam traduções possíveis da palavra “doortastend” que o autor usa em holandês. Depende de qual palavra inglesa Wright usou originalmente para saber qual seria a tradução mais correta. Usei a que me parece mais exata quanto a palavra holandesa, que é de difícil tradução. 

O teólogo inglês N.T. (Tom) Wright vem à Holanda, no final de outubro. Ele é Anglicano, mas mostra ter uma afinidade surpreendente com a tradição reformada holandesa. Como prévia da conferência em Kampen, no dia 31 de outubro: uma conversa com Wright sobre suas irritações dogmáticas, sua visão a respeito da teologia bíblica e sua paixão por alcançar “o crente comum”.

Original por Tjerk de Reus e Hans Burger
Tradução: Tijs van den Brink
Revisão: Daniel de Lima Vieira


Por quatro dias o estudioso do Novo Testamento Tom Wright (1948) estará na Holanda no final desse mês. Primeiro será o palestrante principal de um congresso na Universidade de Groningen, depois visitara a Universidade Teológica de Kampen. Wright está ansioso, diz, pois ele entende que a teologia holandesa o “formou”, e a considera “extraordinária”. Essa parece uma afirmação educada, patente dos nossos vizinhos britânicos, mas em Wright parece um sentimento honesto de dívida (n. t. Para com a teologia holandesa). E realmente há temas comuns, que facilmente conectam os reformados e os neocalvinistas à teologia de Wright, na qual a ênfase está no pacto e na história da redenção, no significado concreto da cruz e da ressurreição, e na chegada real (n. t. efetiva) do novo mundo de Deus.

Wright é professor na St. Mary”s College, a faculdade teológica da Universidade de St. Andrews. Ele aceitou esse posto depois de sua despedida como bispo de Durham. Essa decisão teve tudo a ver com o seu quarto grande livro acadêmico da série Christian Origins and the Question of God (Origens Cristãs e a Questão de Deus). O livro se chama Paul and the Faithfulness of God (Paulo e a Fidelidade de Deus), e contém nada menos que 1650 páginas, e parece coroar o fascínio que Wright teve por toda a vida por Paulo. "Tive muito prazer trabalhando com esse livro," conta, "mas me custou mais tempo do que eu esperava. Comecei-o em um ano sabático em 2009. Em janeiro de 2010 voltei a Durham, onde era bispo. Logo ficou claro que eu não poderia terminar o livro se continuasse em Durham. Foi uma decisão difícil, mas escolhi aceitar o convite de St. Andrews para lecionar. Quando estava aqui ainda tinha que terminar diversos outros livros, como a série A Bíblia para Todos (n. t. Uma serie de comentários bíblicos). Também escrevi, a pedido da minha editora o livro Simplesmente Jesus (Simply Jesus: A new vision of who he was, what he did and why he matters) e em minha mente cresceu o conceito para Como Deus se tornou Rei (How God became King: The Forgotten Story of the Gospels). Enquanto isso meu editor ainda me pediu se podia desenvolver um livro a respeito dos Salmos a partir de uma palestra que tinha dado. Ele disse, pegue a palestra como estrutura básica e cada vez que abordar um Salmo você amplia um pouco – e eis que há um livro. Então acabei por fazê-lo em The Case for the Psalms (O Caso dos Salmos ou Em favor dos Salmos). Assim, fiquei bastante aliviado quando ano passado o grande livro a respeito de Paulo foi publicado."

Público Amplo

Trabalhar em todos esses projetos diferentes parece jogar diversas partidas de xadrez ao mesmo tempo. O público alvo de Wright também varia bastante. Mas isso o relaxa, diz, com um senso de ironia: “Esses livros científicos muito amplos me custam muitas gotas de suor. Entre estes escrevo os livros curtos e populares, e gosto muito disso. Eu gosto muito de escrever e esses livros para um público mais amplo não me custam tempo demais, muitas vezes é uma série de palestras, e entre estas apenas adiciono ordem e estrutura.
Obviamente relaxar não é a única motivação de Wright. Ele busca conscientemente o contato com o público amplo nos seus livros populares. Essa é uma característica marcante das ocupações de Wright, pois são poucos os seus colegas que conseguiriam fazer o mesmo. “É verdade, e na verdade isso é uma vergonha,” diz Wright. “Na minha carreira sempre andei nesses dois caminhos. Eu trabalhava na esfera acadêmica, mas também estava ativo como pastor, bispo e pregador. Isso se tornou incomum nas esferas cientificas atuais. O estudo do Novo Testamento tornou-se altamente especializado, e assim atrai pessoas que gostam de se ater a detalhes. Mas você deve ousar dar o passo para o público amplo que não quer saber apenas dos detalhes, mas são mais interessados no quadro maior, mais amplo. E é evidente que se deve fazer isso sem termos complicados. Quanto a isso, minha família, enquanto eu crescia, me ensinou uma lição útil. As crianças me faziam perguntas, e quando eu trazia termos carregados, diziam: “Papai, fale normal!” A partir dessa lição de humildade vieram os meus livros Simplesmente Jesus e Simplesmente Cristão. E devo dizer que escrever esse tipo de livros me dá muito prazer.”

Herman Dooyeweerd

Wright enfatiza que frequentemente suas ideias teológicas são renovadoras, ou pelo menos surpreendentes. Mas ele também tem as suas fontes, por exemplo os grandes pensadores aos quais se sente em dívida. Em uma entrevista para a revista holandesa Wapenveld, Wright cita o nome do filósofo reformado Herman Dooyeweerd (1894-1977), que concebeu uma cosmovisão filosófica ampla – a Wijsbegeerte der Wetsidee (N. T. Filosofia da Ideia Cosmonômica) -- na qual ele aborda o todo da realidade, da escola e hospital à economia e ao sacramento. Wright ficou impressionado com a abordagem Dooyeweerdiana. “Herman Dooyeweerd foi importante para mim,” conta, “apesar de não ter feito um estudo rigoroso de sua obra. Suas ideias me alcançaram através de um bom amigo, Brian Walsh , que foi muito influenciado por Dooyeweerd. No começo da década de 90 demos uma série de palestras juntos em Oxford, na qual deveríamos abordar uma serie de tópicos, de Novo Testamento a Ética, de forma coerente e uniforme. Eu estava na fase preparatória dos volumosos livros acadêmicos a respeito do Novo Testamento, dos quais The New Testament and the People of God (1992) (n.t. O Novo Testamento e o Povo de Deus) seria o primeiro. Não há dúvida de que devo às conversas com Brian Walsh a percepção de que o Reino abrangente de Deus se conecta com a esperança messiânica do Antigo Testamento, e evidentemente com a maneira como tudo isso foi abordado em Jesus."

Kuyper

Brian Walsh desafiou Wright a pensar diferente do que este estava acostumado. “Não no sentido de “dai a Deus o que é de Deus e ao imperador o que pertence ao imperador” – que seriam compartimentos separados – mas deliberadamente abordar uma profunda conexão entre igreja e mundo. Dooyeweerd queria integrar todas os aspectos da vida sob o ponto de vista da vitória de Cristo. Ele estava convencido, assim como C.S. Lewis, que cada centímetro quadrado e cada segundo é reivindicado por Deus – e também por Satanás. Essa visão não me era totalmente estranha, estava presente de forma embrionária, mas eu nunca tinha pensado a respeito nessa profundidade.  Agora eu tinha que fazê-lo por causa do fascínio do meu amigo por Dooyeweerd. E devo dizer que comecei admirar a consciência intelectual dos pensadores cristãos holandeses – entre os quais evidentemente também devo citar Kuyper aqui! Era muito diferente do que estava acostumado da forma mimada e doce dos ingleses pensarem. Não que não conhecesse pensadores sérios e minuciosos na Inglaterra, mas a meticulosidade dos pensadores holandeses causou uma mudança em mim.”

Historiografia e Teologia

Parece que o senhor conscientemente escolhe ser historiador, por exemplo com o seu modelo de cosmovisão (worldview-model). O senhor não se profila como alguém que escreve Teologia Bíblica.
A questão de Deus é uma questão teológica, não há escapatória, nem se  mantivermos uma perspectiva historiográfica. Para mim essa separação não existe de forma alguma. Alguns colegas me acusam de teologia bíblica, que entendem ser um empreendimento tolo e do século 19. O que eu proponho é: entremos no mundo do Judaísmo do Segundo Templo e então tentemos entender o que importava para a primeira geração de cristãos. Quando se faz isso, muitas coisas se encaixam. Nós mantemos tantos anacronismos no Cristianismo atual, desde como explicamos as parábolas a como entendemos Paulo. Mas tudo entra na perspectiva correta quando se começa a ver como o Judaísmo do Segundo Templo funciona. Você realmente tem aqueles momentos de: “Agora sim!” É a partir dessa perspectiva que tento pensar consequentemente Paulo no contexto da época. Assim sua pesquisa resulta em respostas históricas e teológicas. O que se ouve dos cristãos do primeiro século trata de “encarnação”, sobre a questão de quem Deus é, qual é o significado de Jesus no quadro geral das expectativas messiânicas. Enquanto pesquisador sempre tentei viver com essa tensão (n.t. No sentido positivo, emoção, empolgação, ansiedade, anseio), pesquisando a história e a teologia em conjunto. Minhas publicações podem assim serem classificadas como historiográficas, teológicas, ou até mesmo missiológicas.”

Construto teológico

Geralmente se mantêm as disciplinas separadas. Qual o argumento mais importante para se relacionar mais a teologia bíblica com a historiografia?
Os textos do Novo Testamento que na história de Jesus Cristo se trata da presença direta de Deus. Isso se dá na história real, essa é a convicção deles. E é exatamente essa afirmação que por muito tempo foi considerada anátema por estudiosos do Novo Testametno. Considerava-se que era mais aceitável presumir que os evangelistas não tinham a pretensão de descreverem a história de forma realista. Para eles tratar-se-ia de um belo construto teológico que tinha importância para eles. Mas quando lemos Josefo, ou outros escritores Greco-Romanos, percebemos que eles escrevem de forma consciente sobre as coisas que aconteciam na época. E é dessa forma que se leem os evangelhos de forma natural. Isso não é inocente, mas baseia-se na forma séria dos judeus da época lerem.”

Aconteceu de verdade

Em How God Became King, 2012 (Como Deus se tornou Rei), Wright argumenta que o tipo de histórias que os evangelhos contam, tratam de Deus o Criador e seu mundo. Nesse livro, ele afirma que os evangelhos tratam da realidade concreta, na qual se realiza uma ação divina. Wright: “Historicamente não faz sentido dizer que os evangelistas queriam enfatizar uma espiritualidade platônica, um significado religioso que estaria fora da realidade concreta! É exatamente isso que eles não têm em vista. O que Marcos, Lucas e os outros afirmam poderia ser ficção, no sentido de não estar de acordo com os fatos – mas essa é uma discussão completamente diferente. Mas eles estão convencidos de que a grande história das escrituras alcançou o seu clímax histórico na vinda do Messias Jesus. O fator esquecido, que poderia ter levado a interpretação ao caminho correto, é a expectativa dos profetas do período do Segundo Templo de que o Deus de Israel realmente retornaria. Deus prometeu que voltaria – mas ninguém sabe quando! Também não está claro como será ou o que acontecerá. O retorno de Deus poderia ser assustador, ou talvez empolgante. Mas esse é o assunto, que na percepção dos evangelistas Jesus assumiu o reinado de Deus. Eles contam com a convicção de que foi assim que aconteceu, assim Deus tornou-se rei.”

Irritações

 O senhor se mostra irritado quanto a alguns pontos de vista teológicos. Quais as suas principais irritações dogmáticas?
A forma como as pessoas reivindicam uma cristologia ortodoxa muitas vezes me causa certa resistência. Você deve pensar X ou Y a respeito de Jesus, e se não o fizer você está fora do barco. Geralmente é a reinvindicação de que Jesus é Deus. As pessoas presumem que o Jesus humano poderia sem problemas lembrar-se de como era quando Ele ainda estava com o Pai, antes de encarnar. Eu acho essa abordagem problemática, porque forca padrões racionalistas à explicação das Escrituras. Parece que as pessoas querem subscrever uma fé trinitária ortodoxa a qualquer custo, sem sondarem a profundidade da mesma. Dá para ouvi-las dizerem: “com certeza, Jesus era Deus! Eu subscrevo a isso, portanto estou tranquilo”. Mas a verdade é que se trata do que esse Deus encarnado faz! E o que fará. Se você o limita a “Ele morreu pelos nossos pecados e vai me levar ao céu”, você está perdendo o ponto central dos 4 evangelhos. De acordo com os evangelhos, Jesus se torna o encarregado. O próprio Deus está à frente de tudo em Cristo, e isso significa que algo acontecerá."

Combinação    

"A maioria dos cristãos nem para para pensar nisso. Talvez na Holanda seja diferente, assim como com seus “parentes” calvinistas em Grand Rapids! Quando eu dei uma palestra no Calvin College sobre How God Became King, James K. A. Smith me disse: “Você diz que nós nos esquecemos disso mas nas nossas aulas o reino de Deus e o seu significado concreto são sempre um ponto central!” Na verdade, suspeito que a teologia holandesa seja uma exceção. Dei incontáveis palestras e preleções em outras partes da Europa e dos EUA. Especialmente nos EUA as pessoas dizem: “Nunca ouvimos isso antes!” E quando digo que presumo que muitos pastores se limitam à mensagem de que Jesus se tornou Deus somente para nos perdoar e levar ao céu – ouço pessoas dizendo: “é isso que sempre ouvimos!” Parece que há pouca percepção da atualidade do Reino de Deus, que, de acordo com Jesus, vem “na terra como no céu”. Quando você expande para isso as pessoas rapidamente passam a achar que você está trocando o evangelho da redenção e perdão por um evangelho de melhoras sociais. Mas é claro que essa é uma conclusão precoce.  Nos evangelhos encontramos a combinação incomum de Reino e Cruz.  Os dois, na verdade, andam juntos apesar de a teologia ocidental ter muita dificuldade em mantê-los juntos. As pessoas parecem entender que tudo era um sucesso na missão de Jesus, até que algo deu errado e Ele acabou na cruz. Com isso parece que um plano B entrou em ação quando sua missão original foi por água abaixo – e o que sobra é apenas uma morte isolada que nos salva dos nossos pecados."

Solto da cruz

A questão central então é: “como os dois se combinam? Como conectar a sua atuação e sua pregação, suas curas, seu envolvimento critico nas relações sociais – e por outro lado sua terrível morte e gloriosa ressurreição?” Simplesmente não se levanta essa questão o bastante. E como consequência disso se deslizou para uma teologia da cruz, de tons pietistas, na qual tudo é a respeito da morte salvífica de Jesus, a salvação da minha alma. Do outro lado do espectro deslizaram para uma forma de horizontalismo social no qual o reino se soltou da cruz. Mas no grande capítulo da ressurreição – 1 Coríntios 15 – Paulo escreve que a morte de Jesus resulta em seu reinado concreto, “até que tenha colocado todos os inimigos debaixo de seus pés”. Nesse sentido o Reino de Deus é uma realidade presente e atual. O Reino evidentemente ainda não é o reino de paz na qual resultará quando Deus for “tudo em todos” e a morte for definitivamente derrotada. Mas a partir da ressurreição de Cristo o mundo mudou definitivamente e Deus ativamente dá forma ao Seu novo mundo.”

Quebra cabeça

As irritações dogmáticas de Wright se voltam principalmente ao abismo entre algumas construções dogmáticas e o testemunho dos escritores do Novo Testamento. Muitos evangélicos na Inglaterra e nos EUA se satisfazem com os lugares-comuns dogmáticos, observa Wright. “Enquanto você disser que Jesus é Deus – você está tranquilo. Se subscrever: Jesus morreu no meu lugar – daí está ótimo! É certo que tais afirmações contêm elementos verdadeiros. Mas é como montar um quebra-cabeça com as peças nos lugares errados. Você pode até usar todas as peças, mas como não se encaixam o quadro geral fica deformado. Se olhar bem, a imagem não convence. Esse também é o problema das grandes confissões (n.t. De fé): O reino (quase) não é citado. No Credo de Nicéia você só tem alguma coisa a respeito do Reino lá no final. Então as pessoas pensam: “Ah, então isso ainda virá!” Em How God became King sou crítico quanto a essa omissão e sua estrutura teológica, mas não advogo a favor da abolição das grandes confissões. O que é importante é que as compreendamos de uma maneira nova: a partir do testemunho dos evangelistas e dos escritores do Novo Testamento.

Fonte: http://tukampen.afasonline.com/nieuwsbericht/nederlandse-theologie-doortastend-stelt-n-t-tom-wright   


5 de fev. de 2014

Utopia

‘Sabe,’ digo, enquanto pego a mão dele e a coloco sobre a minha coxa, ‘não seria legal testar as suas idéias em uma experiência ao vivo, e filmar isso?’ Como cheguei a uma idéia dessas eu não sei, mas eu mesma sou totalmente levada por ela.
‘As pessoas podem se inscrever para participarem,’digo. ‘É voluntário, claro, com certeza. Então você escolhe um grupo bem diversificado de pessoas e faz com que eles estudem, primeiro, todas as formas de sociedade que já foram desenvolvidos. Os gregos antigos, filósofos, talvez romances. Tudo que eles tiverem vontade. Pode deixar a sua mão aí, se quiser. Por mim, você também lhes mostraria os quadros e suas instalações. Depois de um tempo, um ano digamos, eles precisam construir uma vila em um campo.’
Eu tomo fôlego e digo: ‘E nós também participamos’.
Eu digo tudo isso para rirmos. Mas será  que é tão ridículo? Sempre se pode aprender algo disso. E pelo menos os dias não serão mais todos iguais.
Infelizmente não impressionei. Erik acha que isso parece um programa ruim nas TV comercial. Ele leva muito a sério e demole a idéia até o chão.
De repente sei porque tenho dor de cabeça por todo esse tempo.
Resumindo, algo tão prático não é coisa para o Erik. Um historiador não precisa de mais prática para saber o que funciona e o que não funciona. E um experimento social é, por definição, perigoso. É só olhar para a história
. (trecho do livro De Woongroep [A comunidade] da autora holandesa Franca Treur, pg. 37-38, tradução minha)

Encontrando meu caminho pela Holanda e analisando principalmente o contexto religioso desse país que depois de tanto tempo voltou a ser meu lar, me deparei com alguns autores que por aqui causaram bastante reboliço com seus livros com profundos questionamentos e críticas à religião cristã e principalmente a tradição reformada, que é (foi) muito forte por aqui. Foi assim que conheci a jovem autora Franca Treur cujo romance de estréia, Confetti op de Dorsvloer, ficou bastante conhecido por aqui (e foi traduzido para o português, leia a respeito aqui, aqui, aqui e aqui). 

Assim, quando saiu seu segundo livro no começo desse ano, não demorei para comprá-lo e começar a ler. Mas o que realmente me chamou a atenção foi uma entrevista da autora em que ela  falava do trecho supracitado e depois apontou para um programa que estrearia em poucos dias: Utopia.

Para surpresa da autora (e minha) alguém não achou, como o Erik, que era uma idéia ridícula quando a teve e fez um reality show, chamado Utopia, em que os participantes constroem a sua utopia. Há um milhão de razões pelas quais não me interesso muito por reality shows, e não costumo gastar meu tempo assistindo-os, mas resolvi assistir um pouco desse para escrever esse texto.

A idéia do programa é que pegaram um grupo de pessoas que devem construir a sociedade ideal deles em um ano. No entanto, não aderiram a primeira parte que a protagonista da história de Treur propôs. A maioria conhece muito pouco de filosofia ou política e não leram ou estudaram para participarem. No primeiro episódio um dos rapazes mais esclarecidos quanto a temas filosóficos (e que pelo jeito pensou que os outros também o seriam) disse que presumia que todos tinham lido Utopia, de Thomas More, livro cujo título serve de inspiração para o programa, supostamente porque o livro fará 500 anos (foi escrito em 1516, ou seja, ainda por cima erraram a conta... Mas o título procede do livro assim como o Big Brother foi tirado do romance 1984 de George Orwell apesar de toda semelhança dos programas com os livros parar aí). Para surpresa do rapaz nenhum dos outros tinham lido o livro...

De Optimo Reipublicae Statu deque Nova Insula Utopia (em português: Sobre o melhor estado de uma república e sobre a nova ilha Utopia) ou simplesmente Utopia é um livro de 1516 escrito por Sir Thomas More (Londres, 7 de Fevereiro de 1478 — Londres, 6 de Julho de 1535) que foi um  estadista, diplomata, escritor, advogado e homem de leis, ocupou vários cargos públicos, e em especial, de 1529 a 1532, o cargo de "Lord Chancellor" (Chanceler do Reino - o primeiro leigo em vários séculos) de Henrique VIII da Inglaterra. É geralmente considerado como um dos grandes humanistas do Renascimento. Foi canonizado em 1935. Escrito em latim,Utopia foi sua principal obra literária e tornou-se sinônimo de projeto irrealizável; fantasia; delírio; quimera; lugar que não existe, dando uso mais amplo do então neologismo "utopia".

Ou seja, o nome é apenas mais uma desculpa para os holandeses inventarem outro reality show ruim (para quem não sabia, foram os holandeses que inventaram o Big Brother e dezenas de outros reality shows que se espalharam por todo o mundo...). Mas a idéia serve para reflexão, já que é mais uma tentativa desesperada de afirmação da bondade humana e a solução de todos (ou a maioria) os problemas se retirados os “fatores malignos da sociedade”. E assim, quando se ouve as razões pelas quais as pessoas vieram ao programa, alguns dizem coisas vagas como que a ganância é um problema na sociedade, ou que querem cuidar melhor do meio ambiente, mas também há quem diga que quer se tornar adulto ou que quer que tudo seja uma grande festa.

Alguns fatores logo chamaram a minha atenção. Por exemplo, não há famílias na Utopia. Todos os que participam estão sozinhos. Alguns deixando conjuges e filhos, outros namorados, pais, irmãos, etc. Pelo jeito não cabem famílias em utopias e são buscas solitárias por felicidade. (A respeito disso, veja o filme Into the Wild [Na Natureza Selvagem]) 

Além disso, apesar de terem afirmado que não teria hierarquias de forma alguma, rapidamente líderes e seguidores surgem e alguns claramente tomam a frente e começa a formação de panelinhas que dentro de alguns dias já estão falando em votar algumas pessoas para fora da utopia (como todo reality show de televisão precisa ter a eliminação de pessoas do programas e portanto a expulsão de alguém da Utopia, para fins de competição e emoção no programa, o que já levanta muitos questionamentos quanto a essa utopia).   

“Why does it rain down on Utopia? Why does it have to kill the ideal of who we are?” (Porque chove na Utopia? Porque precisa matar o ideal de quem nós somos?) O refrão da música Utopia da banda holandesa Within Temptation (veja o video mais em baixo) mostra que há um problema no pensamento “utopiano”: na prática não funciona.     

Ou seja, o resultado do reality show é muito previsível, e não tarda a aparecer na série. Já nos primeiros episódios há uma quantidade impressionante de brigas e discordâncias, e fica muito claro que é  impossível se construir uma sociedade perfeita, simplesmente porque é feita de seres humanos, e o problema não são fatores sociais mas sim o coração humano (Mc. 7.14-23), profundamente afetado pela queda no pecado (Gen. 3). E, além disso, como disse o Erik no trecho que citei de Treur, a história demonstra que as tentativas de se construir utopias não acabam bem. Principalmente após as duas grandes guerras que devastaram a Europa e muitas outras partes do mundo, a ilusão otimista que cresceu após a Renascença e que teve o seu ápice no século XIX, de que o homem estava se desenvolvendo teccnologicamente para uma sociedade ideal cairam por terra diante da realidade da devastação causada por esses ideais.

Mesmo que a  televisão jamais os deixaria passando fome, por exemplo, já que isso afetaria muito negativamente o canal e os produtores, e  já que certamente interfeririam se a coisa saísse do controle (imagine se aprovassem a pena de morte, por exemplo. Quanto a isso veja os filmes: Animal Farm [a Fazenda dos Animais] e Lord of the Flies [Senhor das Moscas]), o programa é armado de tal forma que agrade os espectadores, e a verdade é que nem esses gostariam que tudo desse certo. Até onde sei, o povo assiste a reality shows para ver “o circo pegar fogo e o bombeiro entrar de greve”... (Para isso é só ver as chamadas das “noticias” dos Big Brothers da vida). Não haverá uma utopia televisiva assim como não haverá utopia na vida real. 

Não é possível construir uma sociedade ideal a partir de ideais de direita ou esquerda, tecnológicos, racionalistas ou românticos (movimento filosófico, não romance no sentido amoroso), teístas ou ateístas. Não enquanto essa sociedade for formada por pessoas no estado atual de pecado. Jamais será perfeito.
É por isso que sempre me assusta quando crentes aderem muito firmemente a um discurso político, seja de esquerda, seja de direita, e começam a crer que essa é a solução do Brasil, da Holanda, do mundo...

A Bíblia desmascara as ideologias. É só lembrar da história da construção da torre de Babel. Mas o que a Bíblia propõe no lugar dessa? Um Deus que é desde o princípio até a consumação, cuja Palavra garante o futuro, a esperança e o sentido. E essa esperança não é baseada em uma utopia mas nesse Deus que está aí e que falou, como diria Francis Schaeffer.   

O que fazer então, enquanto cristão? Nada? Não se envolver socialmente? É evidente que não.  Creio que o nosso papel, enquanto cristãos, peregrinando nessa era atual, é buscar a paz da cidade (Jr. 29.5-7), sinalizando o Reino de Deus, que já é, mas ainda não. Buscar construir a melhor, e mais justa, sociedade possível, mas sem se perder em pensamentos “utopianos” de que será perfeito, mas construir jardins de Shalom em meio a Cidade dos Homens, sinalizando a Cidade de Deus, a Nova Jerusalém que descerá do céu, e então sim tudo será perfeito. 

Video da música Utopia da banda Within Temptation:



Letra da música:

Utopia
O desejo ardente de viver e vagar livre
Brilha na escuridão e cresce dentro de mim
Você está segurando minha mão, mas você não entende
Então para onde estou indo, você não estará no final

Estou sonhando em cores de ter a chance
Sonhando de tentar o romance perfeito
Na procura pela porta para abrir sua mente
Na procura pela cura da humanidade

Ajude-nos, estamos nos afogando tão perto, por dentro

Por que chove, chove, chove em utopia?
Por que tem que se matar o ideal de quem somos?
Por que chove, chove, chove em utopia?
Como as luzes se apagarão nos contando quem somos?

Estou procurando por respostas não dadas de graça
Está se ferindo por dentro, existe vida dentro de mim?
Você está segurando minha mão, mas você não entende
Então você está pegando a estrada sozinho(a) no final

Estou sonhando em cores, sem limites
Estou sonhando o sonho e cantarei para compartilhar
Na procura pela porta para abrir sua mente
Na procura pela cura da humanidade

Ajude-nos, estamos nos afogando tão perto, por dentro

Por que chove, chove, chove em utopia?
Por que tem que se matar o ideal de quem somos?
Por que chove, chove, chove em utopia?
Como as luzes se apagarão nos contando quem somos?

Por que chove, chove, chove em utopia?
Por que tem que se matar o ideal de quem somos?
Por que chove, chove, chove em utopia?
Como as luzes se apagarão nos contando quem somos?
Por que chove?
(http://letras.mus.br/within-temptation/1556892/traducao.html)

9 de jan. de 2014

Livros antigos e leitura em 2014

Antes do começo de um novo ano sempre, querendo ou não, paramos para pensar a respeito do(s) ano(s) passado(s), e pensamos/planejamos a respeito do ano que se começa. É claro que sabemos (ou deveríamos saber...) que não temos tudo em mãos, e que, certamente ao se falar de planos para um ano inteiro se deva incluir a famosa frase de Tiago: "Se o Senhor quiser..." (Tg. 4.15). Mas creio que todos param para pensar a respeito do que querem fazer, ver, ouvir, aprender e alcançar no ano que vem.


Um desses pontos a respeito dos quais eu sempre paro para pensar quando um ano está para começar é como quero melhorar nesse ano quanto a leitura (muitos param para pensar nesse assunto, veja, por exemplo, diversas listas de 10 melhores livros lidos em 2013 no blog do amigo Allen Porto), tanto bíblica quanto de outros livros, e ler de forma mais estruturada e frequente. E nesse esforço nos dias antes da virada, procurando esquemas e sugestões para essa melhora, acabei encontrando diversas sugestões para ler mais dos Pais da Igreja, os antiquíssimos escritos dos primeiros séculos do Cristianismo.

Acabei lendo algumas coisas a respeito e resolvi tentar, começando com o famoso livro de Santo Atanásio (296-373): A encarnação do Verbo; primeiro porque há tempos estava na minha lista de livro que precisava ler, e já tinha postergado demais a leitura do mesmo, e segundo por causa da introdução escrita por C.S. Lewis na versão inglesa.
Para minha grata surpresa, Lewis também fala exatamente a respeito da importância de nos debruçarmos sobre os livros antigos. Ele diz:

"É uma boa regra que, quando se termina um livro novo (contemporâneo/recente), não se permitir ler outro livro novo antes que se tenha lido um antigo(clássico).Se isso é demais para você, deveria ler pelo menos um livro antigo a cada três novos."

Uma das razões porque um grande autor como C.S. Lewis sugere essa idéia não é por alguma ilusão quanto ao passado ou saudosismo do tipo "no passado tudo era melhor" (muito comum no futebol, p.e., mas que existe também em todas as outras áreas), mas sim porque os erros e as convicções eram diferentes. Questões que para nós parecem claras e decididas ainda estavam em pauta e precisavam ser ferozmente defendidas. Já questões que na relativização da nossa era se perderam, ou hoje precisam ser defendidas e pregadas, nos clássicos eram verdades aceitas sem muita dificuldade.
Por isso Lewis diz:

"Eu não desejo que o leitor comum não leia livros modernos. Mas se ele deve ler apenas o novo ou apenas o antigo, eu lhe indicaria os livros antigos."
   
Resolvi que essa será a estratégia que adotarei nas minhas leituras nesse ano, tentarei ler um clássico para cada livro atual. Agora falta decidir o que considerarei um clássico, mas essa é outra discussão.
Portanto, se você ainda não parou para pensar a respeito de suas leituras nesse ano, fica aí o desafio de visitar os clássicos comigo e vermos a riqueza do trabalho de tantos que nos antecederam.  





P.S. o livro com a introdução do Lewis pode ser encontrada aqui: http://www.ccel.org/ccel/athanasius/incarnation